O senhor dos cannolis

Reportagem produzida no primeiro semestre de 2010, durante o curso de pós-graduação em Jornalismo Literário pela ABJL.

“Teve um dia que ele não apareceu, estava doente. Tinha em torno de 30 pessoas esperando o cannoli e ele não veio. É que ele tá ficando velhinho, tá chegando atrasado… Olha ele chegando aí, tá chegando”, sorriu eufórico o torcedor André Ciorelli ao ver o “velhinho” atravessar os portões de madeira da Rua Javari e encerrar a angústia que o fazia caminhar de um lado para o outro, dividindo-se entre a espera pelo cannoli e o primeiro tempo do jogo do Juventus, que ainda acontecia no gramado.

Com passos curtos e levemente mancos em função de uma “gota”, doença que causa calos nos dedos e dor insuportável a ele em momentos de crise, o senhor de raros cabelos brancos, sorriso aberto com alguns dentes tortos e jaleco branco vai em direção ao canto do corredor onde se instalará para atender a todos os pedidos pelo doce. Ele é Antônio Garcia (Toninho, entre os íntimos) e há 40 anos comparece a praticamente todos os jogos do Juventus na Rua Javari para vender seu famoso cannoli, doce italiano recheado com creme ou chocolate. Está sempre na companhia da esposa Fátima, sua fiel escudeira e “tesoureira” durante os 15 minutos mais intensos do dia, mais disputado até do que bola na área em fim de partida empatada.

Seu Antônio e dona Fátima diante dos saborosos canollis

Afinal, seu Antônio e dona Fátima têm apenas o intervalo do jogo para vender os cannolis, cuja fabricação pode até levar mais de um dia para ser concluída. Se a partida começar às 11 horas, como naquele domingo, a casquinha em forma de cilindro que compõe o doce precisa ser feita na noite anterior para que fique pronta a tempo. Já se a partida está marcada para às 15 horas, horário em que tradicionalmente acontecem os jogos do Juventus (o estádio não possui refletores e, portanto, não recebe partidas noturnas), a fabricação do doce tem início bem cedo, lá pelas 6 horas, ficando pronto apenas perto das 14 horas, quando seu Antônio e dona Fátima deixam a casa em Cidade Líder e rumam de carro até a Mooca. Embora ambos os bairros sejam na mesma região, a zona leste, o trajeto leva cerca de uma hora.

É preciso cronometrar tudo, uma vez que o processo de fabricação é tão artesanal que qualquer atraso pode prejudicar as vendas. A massa à base de farinha de trigo precisa de um tempo de fermentação antes de ser transformada em cilindro (única parte mecanizada) e disposta em uma forma para ser frita. No óleo quente, permanece por até 30 minutos, quando é retirada para escorrer e ficar “sequinha”, como descreve seu Antônio. Neste intervalo, o creme que vai rechear o cannoli (não à toa, canudo em italiano) é preparado com essências de baunilha ou chocolate para, em seguida, ser colocado dentro do cilindro e se transformar no doce mais desejado nos intervalos da Javari.

É nessa hora, aliás, que seu Antônio se torna o grande craque do Juventus. Vestido com um jaleco branco personalizado com o escudo do clube, o doceiro nem bem aquece e já é cercado por uma “multidão” de torcedores afoitos por um, dois, três ou até dez doces, cada um a R$ 2. Quem o vê de longe, pode até pensar que se trata de um ídolo juventino dando autógrafos — e é quase isso. Seu Antônio, do alto de seus 40 anos de Rua Javari, pode ser até mais importante para a história da instituição do que qualquer presidente ou camisa 10 que já passou pelo clube da Mooca desde 1924, quando foi fundado. O título de patrimônio do clube, porém, ele renega. “Tenho um amor muito grande, mas não sou só eu. Tem muitos outros senhores de idade que vem aqui e gostam do time. Eles também são patrimônio do clube”, minimiza o vendedor, com humildade vista apenas em alguns poucos craques do passado.

Quando começou a vender cannolis, seu Antônio tinha a idade dos meninos que via correr atrás da bola nos campeonatos de base da Rua Javari. Ele até sonhava em ser um deles, mas o trabalho o convocou antes e, mesmo com apenas 10 anos de idade, já estava ajudando seu José e dona Ida, casal de italianos com quem aprendeu a técnica do doce. Toninho, que já havia engraxado sapato e feito carreto na feira, descobriu com eles o seu talento como doceiro. Como era muito esperto para enrolar os canudinhos, logo conquistou a confiança do casal e se transformou em vendedor, perambulando pelos bairros da região com a motivação e a disposição que a pouca idade lhe concedia. A recompensa pelo esforço vinha no fim de semana, quando o casal o premiava com um tabuleiro inteiro para vender e ficar integralmente com os lucros.

Naquela época, era comum que as pessoas saíssem vendendo o doce na rua, fazendo da voz o seu auto-falante e das rimas com o nome do doce o seu anúncio. Naquela época, Seu Antônio vendia os doces do casal italiano em uma caixa de ovo, daquelas que só cabem 12 unidades. Depois, com o sucesso das vendas, ampliou o “negócio” para uma caixa de uva, que comportava bem mais unidades do doce. Mesmo assim, como percorria uma região muito grande (campos de várzea da Vila Formosa e Carrão, entre outros), precisava fazer mais de uma viagem para suprir a demanda.

“Leave the gun, take the cannoli” – Foto: Reprodução Mais Você/TV Globo

Com o tempo, tornou-se um vendedor conhecido na região e, enfim, decidiu buscar a independência, afinal já tinha o conhecimento de todas as fases de produção e venda do cannoli. Hoje, com anos de experiência nos ombros em que leva o tabuleiro, seu Antônio lembra do início da carreira com gratidão. “Graças a Deus reuni muitos clientes e amigos nestes anos como ambulante. Tenho fregueses de um ano e meio, caso do meu netinho, até senhorinhas de 90”, cita o vendedor, que teve notícias de dona Ida pela última vez a cinco meses, por meio de um genro dela. Atualmente com 92 anos, vive na casa da filha e sem a companhia de seu José, já falecido.

Quando começou a se virar sozinho, seu Antônio tinha a mãe como assistente de produção do doce, “cargo” que depois da morte da matriarca passou a dona Fátima, com quem se casou e teve cinco filhos. Hoje, já são 10 netos e um bisneto. Todos fãs do doce, mas nenhum disposto a seguir a mesma profissão do pai. Com a família aumentando, decidiu mudar-se da Vila Formosa para a Cidade Líder, ambos na zona leste de São Paulo, área em que o vendedor ambulante — como ele mesmo se define — costuma estar mais presente.

No estádio do Juventus, porém, só começou a vender o cannoli a partir de 1970, quando já tinha 20 anos de idade. Por “pouco” (mais de 10 anos, na verdade) não assistiu in loco o gol que Pelé considera ser o mais bonito entre seus 1284 gols, “desenhado” em 2 de agosto de 1959 na Rua Javari. Naquele dia, um domingo a tarde, o poderoso Santos já batia o modesto Juventus por 3 a 0, mas os torcedores presentes (estima-se oito mil) insistiam em pegar no pé do jovem craque santista.

Eis então que Pelé recebeu de Dorval na direita e se livrou da marcação de Julinho na entrada da área, tocando a bola sobre ele, num clássico “chapéu”. Mas isso era só o começo: sem perder o pique, Pelé repetiu o lance com outro marcador, Homero, e seguiu com a bola em direção a Clóvis, que acabou se tornando a terceira vítima dos lances aéreos do futuro rei do futebol. Já frente a frente com o goleiro Mão de Onça, ídolo juventino na época, Pelé não teve dúvidas e emplacou o quarto “chapéu” seguido, deixando o gol livre para seu último toque para as redes. Na comemoração, respondeu ao público que o vaiava com um soco no ar, gesto que se tornaria sua marca mais tarde, na conquista da Copa do Mundo de 1970.

Mesmo sem ter estado na Javari naquela tarde, seu Antônio descreve o gol com detalhes. Usa as mãos para representar a genialidade dos toques de Pelé, que não foram registrados em vídeo, apenas reconstituídos com ajuda da tecnologia para o filme “Pelé Eterno”, de 2004. Ele é um típico torcedor juventino, daqueles que acompanha o time e sabe o nome dos principais jogadores — o que, cá entre nós, está cada vez mais difícil no atual futebol moderno.

Sempre que pode, o doceiro aproveita os momentos de pouco movimento e deixa o tabuleiro de doces sob responsabilidade de dona Fátima para ir à arquibancada assistir ao time grená. No domingo em que atendeu o repórter, o Juventus enfrentava o Votoraty pela Copa Paulista, torneio-tampão para os clubes paulistas que não disputam competições nacionais no segundo semestre. Era a última rodada da primeira fase e o time da Mooca precisava vencer e torcer por um tropeço do Linense para seguir com chance de título, o que amenizaria um dos piores anos da história do clube, quando amargou o inédito rebaixamento para a terceira divisão estadual.

O time grená, porém, ainda empatava sem gols no começo do segundo tempo e ouvia dizer que o Linense vencia por 4 a 0, o que eliminava qualquer chance de salvar a temporada. No fim, um empate em 1 a 1 encerrou a partida e o ano do time. Só não extinguiu a torcida de seu Antônio, que seguia confiante em dias melhores. “Tenho certeza que, em 2010, se tiver um pouco mais de apoio financeiro, o Juventus logo vai começar a subir. Aí, em dois ou três anos, voltará para a primeira divisão”, desejou o doceiro, ciente de que a missão não será fácil.

O curioso é que o resultado do gramado quase sempre define qual será o pós-jogo dos torcedores-clientes de seu Antônio. Quando o time perde, por exemplo, o ambulante percebe a expressão cabisbaixa dos que foram à Javari e voltarão mais tristes para casa. Quase sempre é o confidente deles, seja para discutir lances polêmicos do jogo ou simplesmente para ouvir lamúrias como “hoje não deu, seu Antônio, hoje não deu”. Já na vitória, a reação é eufórica e deixa os barzinhos da região “todos cheios de alegria”, como define seu Antônio.

A única coisa que ele não sabe dizer é se o resultado da partida altera o número de cannolis vendidos. “As vendas dependem do público e do dia. O melhor é quando vem bastante gente, acima de mil, duas mil pessoas”, comenta, provavelmente sem saber que a capacidade atual do estádio passa longe disso. Naquele domingo, o clube colocou à venda 1500 ingressos e recebeu oficialmente 534 torcedores. Seu Antônio, por sua vez, levou 260 cannolis e vendeu praticamente todos.

Os que sobram, porém, não vão para o lixo e nem dão prejuízo. Na maioria dos casos, seu Antônio acaba dando o que chama de “presentinhos”, cannolis a mais do que o pedido do cliente. Por exemplo: se a pessoa paga com uma nota de R$ 5, seu Antônio dá três ou quatro doces (e não dois), o que reduz o custo unitário de R$ 2 para pouco mais de R$ 1. Fora aqueles que dá para os policiais de plantão, para jovens jogadores do Juventus e para crianças que o pedem, mesmo com um pouco de vergonha, ao final do jogo. Quando ainda sobra algum doce, seu Antônio leva para casa e distribui entre os vizinhos. Tudo para aproveitá-lo ainda “fresquinho e crocante”, como gosta de dizer.

Mas toda essa generosidade não dá prejuízo? Ele garante que não. “Quando tem um movimento bom, se você segura um pouco mais o preço do doce, ganha mais”, explica ele, que diz ter faturamento maior quando vende por unidade do que em “pacotinhos”. Em suma, são os primeiros minutos de venda, aqueles em que é cercado e praticamente “saqueado”, os que lhe salvam o dia e permitem as generosidades.

Seus melhores dias, aliás, foram também os melhores dias do Juventus. De prontidão, seu Antônio aponta como jogos inesquecíveis a final do Campeonato Paulista Série A-2 de 2005, contra o Noroeste, e a decisão da Copa FPF de 2007, contra o Linense. Ambos os títulos mais recentes da equipe da Mooca, que tem a Série B do Campeonato Brasileiro de 1983 como principal conquista de sua história. Hoje, muitos anos depois, as taças ficaram apenas na memória e na faixa estendida pela torcida juventina atrás do gol, no Setor 2 do estádio.

Com o fim da partida contra o Votoraty e a consequente eliminação precoce naquele domingo, o torcedor se despediu da Rua Javari, para onde voltaria apenas alguns meses depois, já em 2010. Alguns seguiram a tradição e, vencendo ou perdendo, compraram mais alguns cannolis com seu Antônio. Outros demoraram a sair para protestar contra o presidente do clube, Armando Raucci, único tipo de violência que, de tempos em tempos, acontece na Javari. Ninguém, porém, foi para o bar.

Seu Antônio também foi para casa, não sem antes cumprimentar conhecidos (entre eles o volante Marcelo Silva, ex-Santos), oferecer uns cannolis a juvenis do Juventus e acenar para dois ou três torcedores que o vêem andar até o estacionamento com os acessórios e dona Fátima a tiracolo. O caminho é feito em silêncio, talvez pelo fato dele estar se “despedindo” do estádio para só retornar no ano que vem. Neste período não terá férias, irá vender seus doces em outros campos, os de várzea, onde também é reconhecido como o senhor dos cannolis. Embora também sejam bons locais de trabalho, o ambulante sente que não é a mesma coisa. Para ele, não há nada como a Javari.

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