Servir bem para servir sempre

Reportagem produzida em 2010, durante o curso de pós-graduação em Jornalismo Literário pela ABJL.

Oito e meia da noite de uma quarta-feira. Os carros ainda lotam as vias da cidade grande como se não houvesse amanhã, em uma sinfonia desafinada de buzinas, roncos de motor e outros pequenos sons que irritam quem está dentro e fora das correntes sanguíneas da cidade. Essa é uma metáfora batida, mas vale: o trânsito é como o sangue, que corre pelas vias, bombeando pessoas para todos os pontos da cidade, mantendo-a viva. Àquela hora, no caso, a cidade parecia pouco saudável. Estava à beira de um colapso cardíaco.

Em uma loja de conveniência de um posto de gasolina próximo ao Minhocão, a principal ponte de safena da cidade, o taxista João Batista aguarda quieto em uma mesinha um pouco bamba localizada próxima a uma enorme geladeira de bebidas. Há uma atendente, mas ela pouco interage. Ele está acostumado a frequentar o lugar, é seu porto seguro quando uma corrida termina perto da hora do rush. Gosta dali, mas não sabe explicar por quê. Deve ser o trânsito, que ali não entra.

Do lado de fora, o posto de gasolina estava agitado. Taxistas sem clientes trocavam figurinhas enquanto conferiam o nível do óleo de seus carros pálidos, mas João Batista pouco parecia interessado em interagir com os colegas. Sua roupa de trabalho já não era a mesma do começo do expediente: o terno cinza de corte maior do que o indicado para sua estatura mediana estava levemente desalinhado, a camisa branca parecia bem amarrotada e a gravata discreta, levemente afrouxada. Era fim do dia.

Quando entro, logo identifico o taxista do qual conhecia apenas a voz. Ele tem algo perto de um metro e setenta de altura, cabelos pretos com alguma entrada acima das têmporas e rosto meio quadrado, cujas extremidades reforçavam os traços do maxilar e do queixo. João Batista tem o jeito tímido, longe da imagem de líder cativante e empreendedor que fazia dele. Puro preconceito meu, afinal a impressão começou a cair por terra quando ouvi o sotaque nordestino me contar a primeira história.

O melhor táxi do mundo

Dentro do taxi, João Batista oferece uísque, revistas e até aplausos — Foto: Folha de S. Paulo

Eram sete horas da manhã de um dia normal. O ritmo do vaivém ainda era lento, mas muita gente já dava expediente na cidade que nunca dorme. João Batista era um deles. Mesmo cedo, o alagoano já estava sentado ao volante do Renault Scénic branco e bem cuidado. Tão bem cuidado que tem até nome, “O Seu Taxi”, como indica o broche cuidadosamente colocado no lado esquerdo de seu paletó.

João Batista estava próximo da Avenida Paulista quando avistou aquele que tinha tudo para ser um ótimo cliente: um homem bem vestido, com a camisa meio amassada e gravata um pouco frouxa, que parecia sair de um dos hotéis da região. O homem estava impaciente, acenando repetidamente, como se o mundo estivesse acabando e a única saída fosse chamar um táxi. Por isso mesmo, se preveniu e preparou seu “arsenal” para acolhê-lo.

Ao entrar no carro, o cliente até tentou bater a porta, mas foi surpreendido pelos clapclapclaps das palmas gravadas em um CD preparado justamente para recepcionar os passageiros.

– Desliga essa porra! — gritou o cliente, exigindo que o som fosse imediatamente interrompido. João Batista não atendeu. O som estava tão alto que as reclamações do passageiro mal foram ouvidas. Em seguida, sem nem esperar a segunda reação do homem, o taxista logo despejou o mesmo discurso que diz a todos os passageiros.

– Bem vindo ao melhor táxi do mundo! Temos todo tipo de bebidas: água, suco, água de coco, vinho, uísque doze anos. Fique à vontade — completou, apontando para um pequeno isopor localizado no vão do banco de trás. Era a “geladeira”, compartimento onde ficam guardadas as bebidas, cuja temperatura ideal é mantida por um gel importado. Uma espécie de frigobar sem tomada. Tudo grátis.

Naquele momento, o som já havia passado das palmas a um leve dedilhar de violão do típico chorinho brasileiro. No carro, tudo é minuciosamente preparado e pensado para agradar o cliente, que costuma dar boas gorjetas como recompensa. No caso do homem, a música regional do táxi de João Batista havia conseguido minimizar a raiva e quebrar o gelo.

– Pega uma estrada aí — ordenou o cliente, um pouco mais calmo e impreciso. — Mas qual estrada? — retrucou o taxista, surpreso com o pedido inusitado. — Qualquer uma — simplificou, para não dizer que preferia ir logo ao inferno.

João Batista ainda não sabia, mas um pouco antes de acenar para o primeiro táxi que passava pela rua naquela manhã, o passageiro havia surpreendido a mulher, tão amada e cortejada, nos braços de um funcionário contratado por ele para prestar serviços como motorista particular.

– Vou te levar para tomar um chope no Pinguim — avisou João Batista, citando a famosa choperia de Ribeirão Preto, cidade localizada a mais de 300 km da capital. O taxista havia estado lá dias antes e logo concluiu que aquele era o melhor destino para o momento.

– Fomos os dois chorando até lá — conta o alagoano, que até hoje se sensibiliza ao relembrar o episódio. O fato nada tinha a ver com ele, mas desde que adotara o passageiro na rua, largado tal como um cão sem dono, o problema também havia passado a ser seu.

Assim, durante as quatro horas de viagem, os dois se conheceram melhor e o taxista até o aconselhou a aceitar uma oportunidade de trabalho fora do país, nos Estados Unidos, na mesma multinacional em que já trabalhava em São Paulo.
— Você tem que aceitar, é a sua chance. Você dá o que quiser para a mulher, dá a liberdade que ela quer, e vai refazer a sua vida lá fora — recomendou.

E assim foi. O passageiro, agora grande amigo, terminou com a mulher, fez as malas e partiu em direção oposta a seu passado. Hoje, vem pouco ao Brasil (só duas vezes desde que foi morar lá), mas sempre manda noticia por e-mail.

– Ele já arrumou outra, está feliz. Ele é meu representante nos Estados Unidos — orgulha-se João Batista, como quem quer conquistar o mundo (ou, pelo menos, clientes pelo mundo).

– Se alguém vem para cá, ele não fica sossegado enquanto não tem certeza de que eu fui buscar a pessoa no aeroporto — conta, satisfeito com o primeiro “representante” que conseguiu no exterior.

João Batista é assim, gosta de agradar os clientes. Com o tempo, percebeu que não só poderia fazer alguém mais satisfeito, como também ganhar dinheiro com isso.

– O cara quer gastar o dinheiro dele e o que eu faço é oferecer o serviço. Se for bem feito, ele até vai gastar com mais vontade — costuma dizer ao justificar a infinidade de serviços dentro do táxi: “geladeira”, música ambiente, guarda-chuva, revista semanais atualizadas, guia da cidade, livro de gastronomia em seis línguas, álcool-gel personalizado, bolinha de borracha para relaxamento e até um computador com conexão à internet. Tudo a bordo.

O curioso na história de João Batista é que o dinheiro — no caso, a falta dele — foi o principal motor de sua mudança de vida. Antes de ser taxista, o alagoano era corretor de imóveis, mas faliu e, por isso mesmo, decidiu mudar de profissão. Como o irmão caminhoneiro tinha um táxi encostado na garagem — “enferrujando”, diz — propôs o negócio: usaria o carro para trabalhar e, aos poucos, conforme o dinheiro fosse entrando, compraria o veículo do irmão. Era 1998 e, sem saída, João Batista foi à luta.

O pastor e o motoboy

No começo, nada era fácil. João Batista não tinha experiência e ainda precisava competir com outros tantos que, hoje, formam a maior frota de táxis do país. Para se ter uma ideia, estima-se que sejam 30 mil carros circulando para servir passageiros só na cidade de São Paulo. Uma concorrência e tanto para o taxista, que precisou de ousadia e criatividade para se diferenciar dos concorrentes e ganhar o dinheiro necessário para pagar o irmão. Mas o primeiro ano não foi bom para João Batista, e o Tempra 16v pouco rendia para pagar a dívida familiar.

Por sorte (ou destino, o que lhe for conveniente), duas situações ocorridas naquela mesma época o fizeram mudar a forma de pensar e usar o táxi. A primeira aconteceu ainda dentro de casa, com a irmã. João Batista reparava que os programas religiosos exibidos na televisão tinham um enorme poder de atração nela e em tantos outros, que não hesitavam em doar o dinheiro que fosse ao final de cada culto. Para ele, era difícil aceitar que palavras valessem tanto.

– Como pode um cara ficar lá na frente gritando com os braços para cima, em nome de Deus, e ainda conseguir dinheiro? — questionou-se, João Batista, que confessa ter ido a uma dessas igrejas só para tentar entender a magia que transformava frases em dinheiro. Assistiu ao culto e, no final, como já havia visto ocorrer dentro da sua própria casa, presenciou a farta colaboração dos fiéis.

– Tinha uns que doavam tudo o que tinham no bolso. Aí eu fiquei curioso e parei um cara na saída. Perguntei para ele por que ele dava dinheiro e ele respondeu que aquilo o aliviava. No fim, até eu deixei umas moedinhas por lá — conta o taxista, bastante respeitoso quando fala de religião, mas ainda pouco conformado com a catarse religiosa.

A segunda situação, como a primeira, também ficou martelando a mente questionadora de João Batista. Afinal, ele não se conformava como o motoboy Francisco de Assis Pereira, mais conhecido como “Maníaco do Parque”, conseguia atrair tantas mulheres bonitas para o meio do mato, onde as iria violentar e assassinar cruelmente.

– Como era possível um cara feio, pobre e sem estudo levar tantas meninas para o mato? Eu não entendia como era possível! — relembra o taxista, que ainda hoje, mais de 10 anos depois, não compreende como muitas delas foram iludidas com falsas promessas e bom, muito bom papo.

A partir destas duas questões, aparentemente tão distintas, João Batista percebeu que poderia oferecer mais do que um simples transporte. Poderia proporcionar um serviço completo para que o cliente pudesse se informar, trabalhar ou simplesmente relaxar enquanto enfrentava o transito caótico da capital paulista. Bastava fazer tudo ao gosto do freguês.

Se fosse preciso estar bem vestido para receber o passageiro no aeroporto e levá-lo a ambientes corporativos, João Batista estava. Se fosse necessário ter uma estação de trabalho para responder e-mails ou até fazer conferências, João Batista tinha. Mas os outros recursos de “O Seu Taxi” aparecerão mais adiante. Antes, João Batista só tinha ideias.

Bandeira Um

“O Ecotaxi” é o carro (e a marca) de João Batista

A primeira amostra prática de que oferecer um serviço completo e eficiente poderia trazer bons frutos aconteceu meio por acaso. João Batista havia sido chamado por um novo cliente para uma corrida, mas o passageiro mal sentou no banco de trás e o taxista logo o ouviu reclamar de dores no dente. Não houve tempo nem de acertar qual seria o destino.

– O senhor está indo para o dentista? — perguntou inocentemente o taxista, já se preparando para uma emergência médica. — Não, vou para uma reunião. Foi difícil marcá-la e não posso perder. É muito importante — respondeu o cliente, entre nhenhenhéns de dor. — Não, não, não, não. Então o senhor vai primeiro ao dentista — determinou João Batista, que, diante da relutância do cliente, deu o ultimato.

– Olha, o senhor tem três opções: ir a pé, pegar outro táxi ou ir comigo até o dentista. Porque eu não transporto ninguém que vai ficar sofrendo em reunião ao invés de fechar negócio e ganhar dinheiro — decretou, absoluto, o taxista. E o cliente, gemendo de dor, acatou a terceira opção.

Então, João Batista o levou ao dentista para amenizar a dor e, em seguida, à importante reunião. Tudo dentro do tempo, sem que o cliente se atrasasse para o compromisso inicial. Na chegada, o passageiro tentou pagar com uma nota de R$ 50, mas o taxista não tinha troco. Decidiram assim trocar telefones para acertar as contas em outro dia, quando tudo estivesse mais calmo. Uma semana depois, João Batista não só ouviu do cliente que não precisava pagar a diferença da corrida como ainda foi recompensado com R$ 3 mil pela audácia e eficácia no serviço — além de ter ganhado mais um fiel cliente, claro.

– Foi aí que tudo começou. Eu pensei ‘Caramba, fiz tudo certo. Aprendi como todo mundo faz para ganhar dinheiro’ — conta o taxista, relembrando a felicidade do momento “eureka!” diante da solução inesperada do “problema”. A partir daí, João Batista deixou a imaginação ir longe e começou a ousar. Não por acaso, a primeira ideia de serviço para o táxi era um tanto quanto maluca e bastante difícil de concretizar.

Observando os passageiros que atendia na rua, João Batista reparou que muitos tinham problemas com a Justiça, quase todos decorrente do atraso no pagamento de pensão alimentícia. Com base nisso, pensou: “por que não fazer Direito para abrir um escritório dentro do táxi?”. A ideia era prestar consultoria jurídica ao passageiro durante a viagem e até ampará-lo caso ele estivesse em situação delicada.

– Se ele está com uma ordem de prisão, não pode ficar nem em casa, nem no escritório, senão a polícia acha. Só que dentro do táxi, não. Então, minha ideia era essa, que ele ficasse dentro do táxi, relaxando, enquanto eu trabalhava. O cara tomava o uísque dele e eu ficava resolvendo o problema — explica João Batista, que até tentou por o plano em prática, mas não conseguiu. Estudou Direito por dois anos, mas o trabalho e o custo alto do curso adiaram o sonho de formar-se doutor — só adiaram, pois o taxista ainda quer retomá-lo no futuro.

Realizar, aliás, é um verbo presente na vida de João Batista. Depois da frustração por não concluir o curso, o taxista criou a “geladeira” e começou a série de serviços extras para atender melhor o cliente de “O Seu Taxi”. Mais do que isso: o lado “menos teoria, mais prática” de João Batista já vinha desde a adolescência, quando ainda morava no interior de Alagoas e decidiu mudar para São Paulo, seguindo o curso do rio, humano e invisível, que todos os anos retira milhões de migrantes do nordeste e os coloca no sudeste.

Uma vaca por um diploma

Como muitos brasileiros, a infância de João Batista no nordeste foi cheia de privações. Morava com os pais e irmãos em um sítio de São Sebastião, cidade de 32 mil habitantes, vizinho à Arapiraca, esta com mais de 200 mil e distante 130 km da capital Maceió. Desde cedo, o menino conviveu com a dificuldade, tendo que ajudar os parentes a criar os bois e as vacas, principais fontes de renda da família.

Uma destas vacas, a Brasileirinha, acabou virando moeda quando João Batista convenceu o pai de que seria bom mudar-se para São Paulo, onde já viviam alguns irmãos. Com 15 anos na época, o jovem queria estudar e, mais do que isso, deixar as dificuldades para trás. Afinal, nunca havia ultrapassado os limites da cidade do agreste alagoano, e, embora estudasse, pouco tinha acesso à cultura. Andar de ônibus ou carro, por exemplo? Jamais.

– Nunca saí de lá. Não conhecia carro e só fui andar de ônibus nesse evento aí. Cheguei aqui todo enjoadinho, depois de tanta cabeça pra arriba, cabeça pra baixo — conta o nordestino, com o típico sotaque acelerado, que, mesmo depois de tantos anos na cidade, ainda não perdeu. Veio acompanhado dos irmãos, que logo lhe transmitiram aquela que seria sua primeira responsabilidade na nova casa.

– O pessoal chegou e falou ‘Olha, meu filho, aqui é o seguinte: todo mundo tem que trabalhar, tem que se virar, ajudar a pagar o aluguel…’ E foi aí que arrumei um emprego de office boy (em uma importadora de aparelhos de precisão) e comecei a frequentar a escola — relembra o taxista, simplificando a própria história, que vai muito além disso. A começar pela dificuldade em encontrar um lugar para estudar.

Logo que desembarcou na cidade grande, João Batista procurou a escola mais próxima de onde morava, no bairro da Casa Verde, mas ouviu um “não” quando perguntou se havia vaga para estudar. Pegou, então, a carta de referência trazida de Alagoas e seguiu de escola em escola, ouvindo todo o tipo de desculpa. Mas havia prometido ao pai levar o diploma de faculdade e, por isso, não poderia desistir de estudar. Nem que fosse em uma escola particular.

– Cheguei lá e falei ‘se a senhora não me arrumar uma vaga para estudar, eu vou cair nesse Rio Tietê aí’ — relembra, rindo do que um dia já foi trágico. — Eu chorei e ela disse ‘vou arrumar um endereço para você, aí você vai lá e faz do mesmo jeito que fez aqui, chora, reclama’ — completou. O tal endereço era da Delegacia de Ensino.

Tímido e com medo, o jovem não teve coragem sequer de passar pela porta de um lugar com o aquele nome, mesmo que a instituição fosse lhe trazer a liberdade do conhecimento, não a prisão dos crimes cometidos. Tinha medo de estar mal vestido e, por ser moleque, acabar acusado da invasão do prédio, o que o levaria para a outra delegacia. Era triste saber que estava, ao mesmo tempo, tão perto e tão longe do objetivo.

Havia chegado ao local às dez da manhã, mas só tomou coragem para entrar ao meio-dia. Por azar, a diretora havia acabado de sair para o almoço, e a dúvida agora era ficar e brigar pela vaga ou ir embora e abrir mão da chance de estudar. Para piorar, havia a fome, companheira da vida simples em São Sebastião, que o obrigou a gastar todo o dinheiro da volta para casa em um sanduíche de queijo e um copo d’água.

Mesmo assim, o menino ficou firme até que a diretora voltasse e o atendesse. Contou toda a história, dizendo que havia sido rejeitado na escola estadual em frente à sua casa. A responsável pediu um instante e desapareceu, fazendo surgir novamente o medo naquele menino recém-chegado à cidade. Será que ela foi chamar o segurança? Vão me levar para a Febem? Estas eram algumas das inseguranças que afligiam João Batista, mas que logo foram dissipadas. Afinal, a diretora só havia ido buscar um bilhete, cujo conteúdo era a chave do sucesso: uma ordem para que o garoto fosse matriculado.

Ao chegar à escola, foi recebido por uma professora japonesa cujo nome ele lembra até hoje: Dona Elisa. Depois de ler o bilhete trazido por ele e reclamar da atitude da Delegacia de Ensino (‘Pô, mas eles pensam que a gente tem escola para todo mundo!’), autorizou a matrícula do menino. Segundo ela, um aluno havia acabado de desistir do curso, o que abriu uma vaga na sala de aula da quinta série primária. Tudo certo? Nem tanto.

– Mas espera lá, você não pode estudar aqui sem ter um responsável! Cadê seu pai? — questionou a diretora, antes de liberar a matrícula do menino. — Tenho meus irmãos, mas eles estão no serviço e só chegam às oito da noite em casa. — Não, mas para essa vaga aqui precisa de um responsável. Você tem que me trazer esse papel assinado até as cinco da tarde.

– Então não tem jeito, não vai dar… — lamentou João Batista, que, mais uma vez, pensou em desistir.

Mas logo o menino, esperto que era, teve uma ideia para contornar o problema. Pediu o papel prometendo levá-lo ao local de trabalho dos irmãos para que um deles assinasse. Mas, longe do olhar firme da funcionária, a ideia era falsificar a assinatura e voltar sorridente para confirmar a vaga. Até conseguiu que a diretora confiasse nele, mas fraquejou antes de executar o plano.

Na calçada, sem coragem para levar o golpe adiante, sentou-se com o documento na mão e chorou novamente. Um senhor qualquer, que passava por ali viu o menino com os olhos vermelhos e molhados, quis saber o que acontecia e decidiu ajudá-lo logo que terminou de ouvir a história. O velho topou assinar como responsável, mas não antes de receber a promessa de que o menino iria realmente estudar. Pronto. A persistência havia derrotado o medo.

Na escola do bairro, cursou a quinta e a sexta série primária, de onde partiu para o supletivo. Em poucos anos, estava apto a prestar vestibular e fazer uma faculdade, o que seria a reta final para cumprir a promessa feita ao pai desde os tempos de Alagoas. Daquele tempo, faz questão de lembrar os sacrifícios feitos pelos livros, como, por exemplo, reduzir a hora de almoço a um pão com banana apenas para ganhar mais tempo para estudar escondido no banheiro da firma.

Aos 21 anos e ainda com a promessa do diploma em mente, João Batista procurou um curso superior com o qual se identificasse e fosse barato. Escolheu Ciências Biológicas após ouvir o preço da mensalidade e promessas de trabalho do reitor. Aprovado no vestibular, cursou os quatro anos até se formar. E com o diploma em mãos, foi até a terra natal provar ao pai que sua saída para São Paulo havia valido a pena.

– E aí terminei meu compromisso com ele — concluiu o taxista, narrando com indiferença a recepção do pai ao filho recém-formado tão longe de casa. — Foi normal. Ele viu que eu estava bem. Só isso — finalizou, lembrando da volta para casa dez anos depois de ter deixado para trás o sítio e a família. Neste período, voltou a Alagoas apenas uma vez, em 1982, logo depois que um de seus irmãos tirou a própria vida no Viaduto do Chá. Por esse motivo, foi ao agreste buscar a mãe para trazê-la para perto, a fim de amortizar o sofrimento.

No emprego, João Batista subiu de office boy para auxiliar de almoxarifado em oito meses, trocando as ruas pelo escritório. Nesta função, trabalhou por três anos, até que passou a vendedor autônomo de consórcio de carros, oferecendo serviços para a antiga Cia. Santo Amaro de Automóveis, onde ficou até o fim do Plano Cruzado, em 1987. Em meados do ano seguinte, entrou como sócio em uma imobiliária de imóveis que durou até 1997, quando veio a falência.

João Batista dá poucos detalhes dessa época e se constrange cada vez que é perguntado. Prefere dizer que isso foi o começo de tudo, de “O Seu Taxi” e de todo o sucesso de público e mídia que conseguiu atrair desde que transformou um carro enferrujado em referência de oferta de serviços. Antes de se tornar taxista, ocupou funções pequenas e autônomas, como vendedor das então populares Enciclopédia Barsa.

Hoje, depois de 12 anos, João Batista fala com orgulho da profissão, que não pretende largar tão cedo. O velho Tempra 16v foi pago ao irmão conforme prometido e ficou apenas um ano e meio na mão do taxista, que logo o trocou pelo recém-lançado Renault Scénic, maior e melhor. Com esta primeira versão do carro da montadora francesa, rodou de 1999 a 2007, quando o trocou por um modelo novo e automático.

Agora, João Batista já pensa em uma nova troca, desta vez para outro modelo, já que não se fabricam mais Scénics. Para ele, é importante que o carro seja confortável ao passageiro, possa se adaptar aos serviços oferecidos e seja tanto econômico quanto ecológico. Afinal, cuidar do planeta é o mais recente serviço oferecido pelo taxista aos fiéis clientes.

Ecotaxicologicamente correto

João Batista planta árvores para minimizar efeitos do CO2 de seu carro — Foto: Divulgação

Sempre que para o carro após uma corrida, João Batista apresenta ao passageiro uma tabela inusitada. Nela, estão os cálculos prévios com a quantidade de gás carbônico (CO2) emitido ao planeta durante aquele trajeto e o custo para que ela seja anulada. Em outras palavras, o taxista pede ajuda aos clientes para comprar mudas de árvores, que serão plantadas na tentativa de invalidar a poluição emitida pelo táxi enquanto este esteve em trânsito pela cidade.

Para criar a tabela, João Batista utilizou um site (www.carbononeutro.com.br) e conta que os passageiros não só o ajudam pagando a quantia referente ao CO2 produzido quanto “arredondam” o valor para contribuir com a causa. Por exemplo: se a corrida durou uma hora, a tabela de João Batista indica que foram emitidos 11,7 kg de gás carbônico na atmosfera, o que custaria R$ 0,62 para o cliente ficar em dia com a natureza e com sua própria consciência ecológica. Mas há quem pague mais.

– No fim da corrida, eu falo para o meu passageiro que planto uma muda de pau-brasil a cada sete dias para compensar o gás carbônico do táxi. Uma muda custa R$ 40, então eu faço uma relação da quantia gasta pela viagem com esse preço para sugerir o pagamento. A maioria contribui, mas alguns vão além e também pagam bem mais. Tem casos que pagam a muda toda e uns até pedem para colocar o nome nela — explica o taxista, que transforma a plantação de árvores pela cidade em um evento para a comunidade que recebe as mudas e para os clientes que investiram na ideia.

Mas a “festa” só acontece mesmo quando João Batista consegue o dinheiro para comprar de 10 a 15 mudas de pau-brasil, o que geralmente leva de três a quatro meses. Quando a data escolhida está próxima e já existe recurso suficiente para a arborização, o taxista faz contato com alguma subprefeitura, que indica praças com espaço disponível para abrigar as mudas. Feito isso, o dono de “O Seu Taxi” dispara e-mails para clientes e amigos, avisando-os do plantio, realizado sempre aos domingos.

Quando chega a hora de colocar a raiz da árvore na terra, João Batista vira um herói para os moradores da região. Na última ação, a oitava desde que começou com o projeto do taxi ecológico, João Batista reuniu quase 50 pessoas em uma praça do distrito de Guaianases, no extremo leste de São Paulo. A região é vizinha a Itaquera, onde está localizado o Jardim Nossa Senhora do Carmo e a casa do taxista. Era uma ensolarada manhã de domingo, dia 2 de maio de 2010, e a comunidade foi conferir a chegada de um pequeno carregamento de natureza naquele cenário um tão árido.

Por conta desse projeto, João Batista já foi tema de muitas reportagens, principalmente na televisão. Costuma dizer que tem mais de 50 horas no vídeo e reúne algumas de suas participações no site que utiliza como base para o serviço de táxi. É lá também que se encontram a descrição de todos os serviços oferecidos por ele, como o passeio noturno (Pasnost; que é a sigla para ‘passeio noturno de “O Seu Taxi”’), o diurno (Pasdost; passeio diurno de “O Seu Taxi”) e até o do litoral (Paslost; passeio litorâneo de “O Seu Taxi”).

No primeiro, João Batista leva o passageiro até alguns pontos turísticos de São Paulo como o Pateo do Colégio e Teatro Municipal e ainda promete explicar porque o paulistano não consegue viver longe de congestionamento. Já o segundo é dividido em quatro modalidades com nomes bem representativos: o ‘passeio popular’ (Rua 25 de Março, Brás), o ‘popular fashion’ (Bom Retiro), o ‘executivo’ (Shopping Morumbi, Ibirapuera) e o ‘executivo fashion’ (Rua Oscar Freire, Daslu). Por fim, o terceiro permite passear em uma praia do litoral norte, com atividades como passeio de barco, aula de surfe ou até uma ducha proporcionada por um chuveiro portátil oferecido pelo táxi. Cada passeio é um pacote composto de transporte e outros mimos elaborados para cada um dos tipos de clientes de João Batista. Coisa fina.

Trânsito é bom?

Quase duas horas depois do início da conversa, a pequena loja de conveniência estava praticamente do mesmo jeito. Pouca gente havia entrado durante este tempo, o que transformou o local em uma espécie de escritório de João Batista. Enquanto conversávamos, o taxista pouco se mexia na cadeira ou se exaltava. O único movimento constante era o das mãos batendo feito um martelo na mesa estreita, que quase não comportava os poucos objetos que ali estavam.

Lá fora, a noite era plena e os carros já não eram muitos. João Batista decidiu então me convidar para dar uma volta no tão falado táxi. Conheceria, enfim, aquele carro tão peculiar. Entrei pela porta direita de trás, oposta ao banco do motorista, e não vi nada muito diferente de um táxi comum. Mas foram só começar as palmas para que pudesse experimentar a sensação de ser mimado por ele no trânsito. “O Seu Taxi” é praticamente um playground para adultos estressados após o expediente!

Não é tão estranho ouvir que João Batista gosta do trânsito de São Paulo. Embora perca muito tempo parado nos congestionamentos da metrópole, é no trânsito que ele ganha a vida para sustentar a mulher e um filho pequeno, seus dois únicos pilares apoiadores, já que os irmãos ainda contestam a forma com que o taxista ascendeu na carreira. Para o alagoano que nunca havia visto um carro quando morava no agreste, o amontoado de carros é sinal de prosperidade.

– É uma coisa boa, né? Transito é o melhor negócio. No dia em que não tem, fico preocupado, porque o pessoal deve estar gastando dinheiro em outro lugar, não em São Paulo. Quando tem congestionamento você sabe que o dinheiro está circulando. Essa é a satisfação das pessoas — analisa o taxista, enquanto dirige o Scénic pelas ruas vazias da região dos Jardins. E vai ainda mais longe nessa filosofia.

– Eu gosto do trânsito porque ele é o único local onde você pode ver você mesmo. Ele te obriga a olhar o que você fez de bom e de ruim e te deixa sonhar com alguma coisa no futuro. Mas as pessoas nunca têm tempo para isso — lamenta João Batista, que não para de contar histórias e dar exemplos.

– Tem vezes que meu passageiro entra no carro e está muito trânsito. Mas o que ele pode fazer? Ele tem compromisso, mas só vai poder resolver quando chegar lá. Então aqui é o lugar aonde ele vai se lembrar da sogra, da mulher, de uma pessoa que ele pensou um dia, mas não teve tempo de ligar, de marcar um encontro. Aqui ele vai pensar em alguma coisa que queria fazer, mas não teve tempo de planejar. Aqui ele vai poder fazer tudo isso tranquilo — conclui o taxista, certo de que o trânsito não é tudo o que falam (mal) dele.

Ele tem razão. O trânsito pode ter mesmo seu lado fascinante.

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